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Vila Belga (Santa Maria)
A Vila Belga constitui um conjunto de edificações construídas pela empresa ‘Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil‘ para os seus funcionários. Sua denominação faz referência à nacionalidade da empresa e de seus primeiros moradores. Localizada próxima à Gare da Viação Férrea da cidade gaúcha de Santa Maria, às unidades residenciais somam-se ainda a sede da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea, seu clube e cinco armazéns. O conjunto foi projetado, entre 1905-1907, pelo engenheiro belga Gustave Vauthier, que, nesta época, era diretor da Auxiliaire. Trata-se, portanto, de uma iniciativa relativamente pioneira no Rio Grande do Sul.
Para a sua construção, Vauthier inspirou-se na enciclopédia “Traité d’Architecture” do arquiteto e engenheiro belga Louis Cloquet.
Em 1898 a empresa belga, a Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil (Auxiliaire), arrendou a Estrada de Ferro Porto Alegre - Uruguaiana. Logo depois, em 1901, relocalizou para Santa Maria, suas oficinas que funcionavam em Taquari. Em 1905, ao assumir a administração de toda a Viação Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS) unificada, a Auxiliaire transferiu também sua sede para Santa Maria. Nesta época, Santa Maria já abrigava as oficinas da belga Compagnie des Chemins de Fer du Sud-Ouest Brésiliens, responsável pela linha Santa Maria-Cruz Alta. Esta escolha foi estratégica porque Santa Maria, após o início da construção da Estrada de Ferro Santa Maria - Marcelino Ramos e a previsão de seu prolongamento até São Paulo, tornou-se um dos principais entroncamentos da linha. Em 1910 foi completada a linha férrea que partia de Itararé (SP), passando por Marcelino Ramos e Santa Maria, alcançava Rio Grande, formando a ferrovia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Tal integração consolidou Santa Maria como cidade ferroviária, título que mereceu, pelo menos, até meados da década de 1960.
O projeto do engenheiro belga Gustave Vauthier
Para abrigar seus funcionários graduados (mas não propriamente do primeiro escalão) que trabalhavam diretamente na operação do pátio ferroviário, a Auxiliaire adquiriu no dia 09 de Agosto de 1905, uma gleba urbana próxima à Estação de Santa Maria e iniciou a construção de uma série de residências, conjunto que ficou conhecido como "Vila Belga". O projeto foi desenvolvido pelo engenheiro belga Gustave Vauthier, na época diretor da Companhia, e que atualmente dá nome a uma das ruas que cruzam o conjunto (a Rua Dr. Wauthier). Os diretores da empresa viveram em chácaras na Avenida do Progresso (atual Avenida Rio Branco) que ligava a estação ao centro de Santa Maria. O próprio Vauthier construiu, nesta avenida, a sua própria casa que infelizmente foi derrubada. A casa do diretor Manoel Ribas ainda encontra-se no n° 303 na Avenida Rio Branco. Os trabalhadores braçais moravam no outro lado da linha de ferro, no bairro de Itararé.
Há poucos dados disponíveis sobre a quantidade de funcionários da ferrovia lotados nas suas unidades (oficinas, estações, escritórios, etc.), sediadas em Santa Maria. O historiador riograndense Antônio Isaía estimava que, apenas nas oficinas de Santa Maria, o número de operários era de 589, em 1921, chegando a 750, no início da década de 1940.
A Vila Belga foi o segundo conjunto residencial do estado do Rio Grande do Sul construído para abrigar funcionários de uma empresa. Composta inicialmente de apenas unidades residenciais, ao longo do tempo teve acréscimos como a construção da farmácia (1917), Escola de Artes e Ofícios (1918-1920), açougue (1920), escola (1924-1930), Casa de Saúde (1931 - 1933), Padaria Modelo e fábrica de bolachas (1962).Também contou com outros edifícios como uma tipografia, uma indústria de torrefação e moagem de café, fábrica de sabão, Clube dos Funcionários, prédio sede da Cooperativa e armazéns.
Mas os conflitos na Europa que acabaram por desencadear a eclosão da Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que geraram um aumento das exportações para os países envolvidos nos conflitos, causaram o endividamento da empresa belga. Como resultado, em 1910 a Brazil Railway Company adquiriu 70% das ações da Auxiliaire.
Mesmo após a passagem da administração da Auxiliaire, a Vila Belga continuou servindo como moradia para os funcionários da linha. Desde 6 de janeiro de 1988, a Vila Belga é considerada patrimônio histórico e cultural do município de Santa Maria (lei municipal nº 2983/88), e estadual (IPHAE). Em 13 de novembro de 1997, através de leilão que deu preferência aos então moradores, as casas passaram a ser propriedades particulares.
Apesar de ter sido construída por uma empresa ferroviária para fornecer habitação próxima aos locais de trabalho dos seus funcionários, a vila não se configura como uma tradicional "vila operária". Isto é, não está separada das cidades e não foi construída segundo princípios hierárquicos e de organização social, mas sim como um pequeno bairro do município de Santa Maria. Seus habitantes gozavam de igualdade de condições em suas residências, que variavam em tamanho, mas não em qualidade.
A construção das casas foi realizada por etapas, a partir de 1905, sendo concluída em 1907, compondo um conjunto de 84 casas geminadas. É importante ressaltar que há, em as diversas fontes bibliográficas, divergências quanto à datas e detalhes. As placas informativas instaladas na entrada da Vila Belga, com texto fornecido pelos ‘Arquivos de Secretaria de Município de Turismo de Santa Maria’, informam que a Vila Belga foi inaugurada em 1903 e que seu idealizador foi o engenheiro belga Gustave Wauthier. Já o Prof. Dr. Caryl Lopes publicou no livro “Anais do seminário: Território, patrimônio e memória” (Santa Maria, 2001) na página 144, a certidão comprovando que a Auxiliaire comprou no dia 09 de Agosto de 1905 um terreno com área de 47.250 m² de Osvaldo Beck e sua mulher Luiza. E o nome do engenheiro belga começa com V e não com W como consta nas diversas cartas que encontram-se no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria. A conclusão da construção da última casa na Vila Belga aconteceu provavelmente no começo do mês de abril de 1907. Ainda não foram encontrados documentos oficiais sobre o término da construção das casas. Um artigo do jornal “A Tribuna” de 13 de abril de 1907 noticiou a intervenção policial numa briga entre os operários que festejavam a conclusão da última casa.
Inspiração belga
Para a construção da Vila Belga, o engenheiro belga Gustave Vauthier inspirou-se no “Traité d’Architecture” (5 volumes publicados entre 1898 e 1901) de Louis Cloquet. Louis Cloquet (1849 Seneffe, Bélgica - 1920 Gent, Bélgica) foi um arquiteto e engenheiro de pontes e estradas. Além do seu trabalho como arquiteto municipal na Bélgica, foi ainda professor na Universidade de Gent e na Escola de São Lucas onde teve papel destacado no final do século XIX. Junto ao Instituto de Belas Artes da cidade de Antuérpia, Cloquet teve uma produção teórica significativa que, em São Paulo, repercutiu principalmente através do seu “Traité d'Architecture”, empregado como livro texto no curso de engenharia e arquitetura da Escola Politécnica de São Paulo. O livro “Traité d'Architecture” foi encontrado na biblioteca de Vauthier e faz atualmente parte da biblioteca da Universidade Federal de Santa Maria. Vale a pena lembrar que o próprio Gustave Vauthier formou-se também como engenheiro de pontes e estradas em 1884 na já mencionada Universidade de Gent. No período de estudo de Vauthier, Cloquet ainda não havia sido nomeado professor, o que apenas aconteceria em 1890.
O Prof. Dr. Ricardo Rocha destaca a relação da Vila Belga com a obra de Louis Cloquet em questões como a localização da vila, os tipos de unidades e suas possibilidades de formação em conjuntos e da necessidade de diversidade, identidade e isolamento das unidades. Para Cloquet, a uniformidade dos bairros construídos para a população operária gerava monotonia e banalidade, além de negar a individualidade humana e a dignidade do proletariado. Vauthier era consciente dessas preocupações e criou diversos tipos de casas. No processo de tombamento, as 80 unidades habitacionais ainda existentes foram identificadas em cinco tipos.
As residências na Vila Belga apresentam apenas um pavimento térreo, sendo que algumas contam com um porão, configurando um conjunto com volumetria bastante uniforme. Os vãos, portas e janelas são emoldurados por diferentes relevos em massa para as casas geminadas, e apresentam verga reta. Todas as portas possuem bandeiras móveis (janela na parte superior da porta) ou janelas sobre as portas. As janelas são do tipo guilhotina (de correr verticalmente), com caixilharia de 12 ou 24 vidros, dependendo da residência, e protegidas internamente com postigos. As paredes externas, as medianeiras e as que dividem os blocos, que formam a residência, são em alvenaria de blocos cerâmicos maciços unidos com argamassa de cal e areia. As coberturas são de telha cerâmica do tipo colonial brasileiro sobre estrutura de madeira de coqueiro. Os pisos internos são elevados para protegê-los da umidade e são em madeira, assim como o forro e as divisórias internas. Estas são paredes simples, assim realizadas para poderem ser adaptadas à distribuição da residência de acordo com a família que vivesse ali. Cada casa geminada possuía um poço para abastecimento de água, e a latrina localizava-se na parte posterior da residência, no pátio.
Os materiais preferidos utilizados foram os locais, pois no município existiam muitas pedreiras de diferentes qualidades, abundando o grés vermelho, principalmente utilizados nas fundações das edificações, como pode ser observado na Vila Belga e na estação ferroviária. Também a madeira utilizada para a construção era de procedência local, já que no município existiam muitas madeiras de lei de excelentes qualidades, as quais foram utilizadas para dormentes da estrada de ferro e outros usos na construção civil.
O conjunto distribui-se ao longo de quatro vias – duas no sentido Leste-Oeste: rua Coronel Ernesto Beck, com 32 unidades, e rua Pinheiro Machado (atual Manoel Ribas) com 28 unidades mais 2 unidades que formavam a farmácia; e duas no sentido Norte-Sul: rua Garibaldi (atual Dr. Wauthier) com 10 unidades, e rua Coronel André Marques com 13 unidades.
A atualidade da Vila Belga
A Vila Belga é muito bem conhecida na cidade de Santa Maria, tem placas nas estradas indicando a sua direção. Cada segundo e terceiro domingo do mês, é organizado o “Brique da Vila Belga”. Foram escritos diversos livros sobre a Vila e ainda mais artigos e dissertações. O bairro inspirou também a autora belga, Evelyne Heuffel, que escreveu uma crônica de imigração, com titulo “Villa Belga : échos d'une émigration dans le sud du Brésil (1904-1910) : roman . tome I : in-finis terrae” (Bruxelles : M.E.O., 2013. - 339 p.– ISBN 978-2-930702-53-7).
Ao longo dos anos, foram executados projetos de revitalização da Vila Belga. A prefeitura de Santa Maria, através do projeto Reviva Centro, contemplou em 2012 melhorias nos passeios públicos e na pavimentação, pintura das residências e instalação de postes de iluminação com fiação subterrânea. Infelizmente, durante minha visita em março de 2016, constatei que tanto a pavimentação como os postos de iluminação encontravam-se quebrados. Muita grama perto das placas com informação sobre a vila e diversas ocorrências de esfolamento da pintura, infelizmente, dificultam a visibilidade do conjunto.
Mas há uma boa notícia. Em dezembro de 2015, foi apresentado um projeto de lei da Prefeitura que visava oferecer a Vila Belga, a estação e a uma parte da Vila Rio Branco um novo polo histórico, cultural, gastronômico e de lazer, nomeado Polo da Vila Belga – Centro Histórico. O projeto foi aprovado em 2016. No fim de 2021, a cidade começou a analisar mais de 500 sugestões recebidas em resposta a pergunta: “Como você imagina o centro histórico no futuro?”
Nós esperamos, com grande alegria, que esse projeto se concretize e que essa contribuição da Bélgica ao Rio Grande do Sul, possa ser vista em toda a sua dimensão histórica e inovadora, até os dias de hoje.
Em 2021, a administração da cidade apresentou a candidatura do Clube dos Ferroviários da Vila Belga no quadro de “iconicidades” do Governo do Rio Grande do Sul, que visa renovar os prédios históricos icônicos no território do estado e a reconvertê-los no quadro da transição para a inovação e a economia sustentável: a candidatura foi aceita pelo governo.
Além disso, sinalizamos com grande prazer que há duas associações que atuam no bairro, a Associação dos Moradores Ferroviários da Vila Belga e a Associação do Brique da Vila Belga.
Também na Bélgica, a Vila Belga desperta interesse: em 2017, a Vila Belga recebeu o Prêmio Patrimônio Belga no Exterior, concurso realizado pelo Serviço Público Federal Belga dos Negócios Estrangeiros e pela Fundação Rei Baudouin. Consulados e embaixadas espalhados pelo mundo foram convidados a apresentar propostas para o certame. Oficialmente, o reconhecimento se deu em 2017, em solenidade realizada em Bruxelas, na presença do príncipe Lorenz da Bélgica, arquiduque da Áustria-Este. Marc Storms foi o responsável por apresentar um estudo sobre a Vila Belga para as autoridades belgas.
(Katia Pinheiro - Thomas Maes - Marc Storms, fotógrafa: Karmen Spiljack)
No dia 25 de novembro de 2021 ocorreu, na presença do prefeito Jorge Pozzobom e vice-prefeito Rodrigo Decimo, o descerramento da placa de reconhecimento. na Rua Manoel Ribas, pelo cônsul da Bélgica no Brasil, Thomas Maes, pela cônsul honorária da Bélgica em Porto Alegre, Kátia Pinheiro, e pelo historiador Marc Storms. Thomas Maes ressaltou que o Prêmio do Patrimônio Belga no Exterior busca reconhecer não só o passado, mas a herança viva da Bélgica. Conforme o cônsul, a visita a Santa Maria foi uma “abertura de olhos” para o potencial local. “É importante ver que a Prefeitura tem projetos para o futuro da Vila Belga e que eles são pensados de forma colaborativa, com as pessoas junto. Ficamos muito felizes em finalmente podermos entregar essa placa para Santa Maria”, disse Maes.
A prefeitura apresentou à comitiva belga os planos em relação à drenagem e iluminação da Vila Belga e da pintura das casas, além de fortalecer a instalação de empresas de economia criativa. E, no dia 29 de novembro de 2021, foi publicado o processo licitatório para a contratação da empresa que recuperará o calçamento e realizará a drenagem pluvial das ruas da Vila Belga.
A arquiteta Cristiane Thies, envolvida juntamente com o seu marido na revitalização do prédio da Cooperativa, foi contratada para realizar um estudo sobre o restauro e futuro uso da Gare de Santa Maria.
Nós esperamos, com grande alegria, que esses projetos se concretizem e que essa contribuição da Bélgica ao Rio Grande do Sul possa ser vista em toda a sua dimensão histórica inovadora, nos dias de hoje e para as futuras gerações.
No dia 26 de novembro, Marc Storms fez uma palestra na Universidade Federal de Santa Maria sobre as presenças belgas no patrimônio de Santa Maria.
Fontes:
- A Vila Belga / Caryl Eduardo Jovanovich Lopes em “Anais do seminário: Território, patrimônio e memória” (Santa Maria, 2001) p. 122-147
- A CONPAGNIE AUXILIAIRE DE CHEMINS DE FER AU BRÉSIL E A CIDADE DE SANTA MARIA NO RIO GRANDE DO SUL, BRASIL / Caryl Eduardo Jovanovich Lopes (Tese de Doutorado - Barcelona, Catalunha, Espanha – 2002)
- Vilas ferroviárias no Brasil : Os casos de Paranapiacaba em São Paulo e da Vila Belga no Rio Grande do Sul / Anna Eliza Finger (Dissertação de Mestrado - UnB - 2009)
- VERTICALIDADES E HORIZONTALIDADES NOS USOS DO TERRITÓRIO DE SANTA MARIA-RS / José Odim Degrandi (Dissertação de Doutorado - Santa Cruz do Sul – 2012)
- O CONJUNTO OPERÁRIO DA VILA BELGA EM SANTA MARIA (RS)/ Ricardo Rocha
- Entrevistas com prof. Dr. Caryl Eduardo Jovanovich Lopes, o morador Paulo Conceição e a guia turística Carmen Lorenci em março de 2016
- Vila Belga, em Santa Maria, é reconhecida como patrimônio internacional pelo governo da Bélgica
Texto e fotos: Marc Storms, março de 2016 + novembro de 2021