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Belga - Indivíduo que não tem o que fazer, desocupado, ocioso, ... (Vocabulário Pernambucano)

Sabemos que belga é um adjetivo e um substantivo e significa relativo à Bélgica ou natural desse país. Menos conhecido é o adjetivo belga, usado na zootecnia para indicar uma raça de cavalos de tração de grande porte ou o nome feminino para indicar um pequeno campo cultivado. Eu fiquei com boca aberta quando li a definição da palavra no livro Vocabulário Pernambucano de autoria de F.A. Pereira da Costa:

Belga - Indivíduo que não tem o que fazer, desocupado, ocioso, que anda enchendo as ruas de pernas.”

No mesmo vocabulário, ainda consta o adjetivo belgança, também pejorativo, que significa “anda enchendo as ruas de pernas” e o verbo belgar, “que talvez ainda venha a pôr não ter o que fazer, a moda dos belgas”.

O Vocabulário foi publicado pela Imprensa Oficial em Recife, pela primeira vez em 1937, baseado em publicações de verbetes na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco. A sua criação remete aos inícios do século XX, sendo que o autor faleceu em 1923. Pereira da Costa era formado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife, foi político e autor de trabalhos sobre a história do estado de Pernambuco e com uma produção literária sobre cultura popular e folclore. Uma segunda vez foi publicada em 1976. Ambas contêm o verbete belga com o significado citado acima. F. A. Pereira da Costa se baseou em quatro textos jornalísticos de dois jornais locais para criar o verbete belga e mencionou suas fontes. São três da revista America Illustrada, n° 25 de 1872, n° 19 de 1877 e n° 22 de 1880 e, o maior trecho, foi copiada da revista Lanterna Mágica, n° 201 de 1887.

Pesquisamos as fontes originais. A América Ilustrada foi um jornal político e humorístico e ilustrado com bastantes caricaturas. Uma das referências aos belgas aparece em um poema extenso do qual citamos abaixo o trecho que se refere a eles:

America Illustrada

(America Illustrada, Ano VII n° 19 de 1877)

Deste poema, F. A. Pereira da Costa publicou, no vocabulário a frase “Muitos belgas da justiça querem mamar na teta da vaquinha”, sem contextualizar a sua origem.

O mesmo aconteceu com a referência à America Illustrada do número 22 de 1880.

O trecho original:

SALPICOS

Estamos felizes.

Este nosso torrãozinho que não é do bruto, nem mascavado; acompanha o progresso, cresce, quando menos na colonização dos engraxates, que nos fazem o favor de limpar as botas; dos belgas, que nos ensinaram a curar as consumições na rua do Imperador, ou a distrair os cuidados à sombra das arvores na Lingueta.

que ficou no verbete abreviado “Os belgas nos ensinaram a curar as consumições na rua do Imperador, ou a distrair os cuidados à sombra das arvores na Lingueta.”

Cais da Lingueta

(Foto – Cais da Lingueta - Local em que nos séculos 18, 19 e no início do século 20 foi muito importante para o desembarque de pessoas e mercadorias, onde existia um comércio voltado para aqueles que desembarcavam na cidade. Foi destruído em 1909 com o Plano de Modernização do Porto do Recife.)

Não localizamos o original da terceira referência, tirada da America Illustrada do n° 25 de 1872, que ficou no vocabulário como “Ao que vimos de transcrever, temos apenas que acrescentar o adjetivo belgança, de expressão obvia, e que concorrentemente, apareceu. Bacharel que anda belgando par ahi por essas ruas.

A maior parte do verbete belga no vocabulário é copiado da revista Lanterna Mágica, n° 201 de 1887. Este é bem fiel ao texto original.

Lanterna Magica
O texto original publicado em 14 de setembro de 1887 era o seguinte:

Talvez já muitas pessoas, talvez, ignoram a razão por que chamam - belga - ao individuo, que não tem ocupação.

Em mil oitocentos e cinquenta e tantos por aqui apareceu uma porção de belgas, que quase todos se empregaram no serviço da inumação dos canos para a iluminação a gás, o qual estava em andamento.

Não sabemos se esses estrangeiros foram mandados vir engajados, ou por qualquer forma, par o dito serviço. Mas, se não nos falha a memória, eles eram em número muito superior a cem.

Foram os belgas os estrangeiros que pior tratamento receberam do nosso clima. Não sabemos, porém, si o que lhes sucedeu foi devido ao mesmo clima, ou si à crápula, a que se entregaram. Talvez a natureza do trabalho contribuísse para o mal daqueles europeus.

Em pouco tempo tornaram-se magros, amarelos, com os pés cheios de bichos, e trocaram a pá pela cachaça e o trabalho braçal pela vida de mendigos.

Era deplorável o estado de um belga. Ainda nos recorda, que aparecendo uma publicação em uma das gazetas desta cidade, na qual era de alguma sorte acusado o respetivo cônsul, este declara, também pela imprensa, que eles eram indignos de qualquer proteção.

O nosso povo, porém, que não perde ocasião de bem aplicar um epiteto, começou a chamar a todo sujeito vadio e vagabundo, - belga - , e assim diziam: Fulano é um belga; Sicrano anda belgando; isto é: anda enchendo as ruas de pernas por não ter o que fazer, a moda dos belgas. E assim criaram o substantivo belga e o verbo belgar, que talvez ainda venha a fazer parte dos nossos futuros dicionários.

(Lanterna Mágica, n° 201 de 1887, p. 2-3)

A Lanterna mágica foi um periódico “livre e humorístico” que circulou em Recife no período de 1882 a 1909, com periodicidade trimensal regular.

Os textos mencionados acima não foram assinados. Assim não conhecemos os jornalistas que os escreverem. Mesmo sendo publicados em revistas humorísticas, é bem provável que suas observações sobre o comportamento dos belgas estivessem relacionados a alguns acontecimentos históricos.

Uma menção de contratação de operários belgas encontramos na página 123 da dissertação “Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880” de Marcelo Mac Cord (Campinas, 2009): “No segundo semestre de 1857, o Arsenal de Marinha pediu a contratação de mais trabalhadores vindos da Europa. O requerimento foi prontamente aprovado. Em meados do ano seguinte, 22 portugueses e 17 belgas chegaram ao Recife”. Na página 187, Marcelo relata que “No relatório do Arsenal de Marinha de Pernambuco, elaborado em 8 de janeiro de 1863, quase todos os artífices belgas que haviam chegado da Europa em finais da década de 1850 foram taxados como maus operários. Dos 17 imigrantes que aportaram no Recife, 14 foram acusados de pecar pela sua pouca perícia e ainda por [serem] preguiçosos”. E acrescenta “Este tipo de julgamento ficou tão impregnado na memória social pernambucana, que Pereira da Costa registrou o termo belga entre os falares populares mais corriqueiros de inícios do século XX. Segundo o memorialista, o indivíduo que fosse identificado daquele jeito era alguém que não tem o que fazer, desocupado, ocioso, que anda enchendo as ruas de pernas”.

Infelizmente ainda faltam detalhes de onde vieram esses operários belgas, quem os contratou para fazer o que e em quais condições. O jornal Diário de Pernambuco de 11 de janeiro de 1858, informa que o Sr. Carlos Colsoul, engenheiro mecânico belga, foi contratado pelo governo geral para a construção de máquinas a vapor e direção dos estaleiros de construção do arsenal da Marinha de Pernambuco. Não achamos evidencias que houve contatos entre o ir. Colsoul e os operários belgas.

Há, no fim dos anos 1850 e início 1860, diversos anúncios no jornal Diário de Pernambuco de “engajado belga para o serviço do arsenal de marinha, pedindo a rescisão do seu contrato”. Em alguns casos, acrescido de “Obrigando o estado a dar uma passagem de convés para o seu país. Há também algumas menções de belgas trabalhadores da estrada de ferro, recolhidos à casa da detenção por embriaguez.”

O número pequeno de belgas, 17, contratados pelo Arsenal de Marinha, não coincide com a menção, na revista Lanterna Mágica, que “eles eram em número muito superior a cem”.

A Lanterna dá outra pista sobre a presença dos belgas, ao escrever que “quase todos se empregaram no serviço da inumação dos canos para a iluminação a gás, o qual estava em andamento”. A rede de iluminação pública do Recife, na área mais central da cidade, utilizou lampiões à azeite, substituído, em 1859 por lampiões alimentados por gás, produzido no gasômetro. Desta fábrica, o gás era conduzido para os lampiões, situados nas ruas, por meio de uma tubulação. A empresa Fielden Brothers de Manchester, Inglaterra, ganhou o contrato de iluminação a gás do Recife em 1856. O Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano no Recife, que guarda os contratos e petições da empresa mencionada, estava infelizmente fechado por tempo indeterminando quando visitei a cidade em julho de 2024.

O catálogo da exposição Vlamingrant: Over migratie van Vlamingen vroeger en nu (Atlas Antwerpen, 2012) menciona, na página 94: “Em 1859, 500 trabalhadores belgas com perspectivas promissoras foram recrutados como trabalhadores em Pernambuco, na costa atlântica do Brasil (hoje a cidade de Recife). Decepcionados com a dura realidade ou descartados e sem trabalho, murcharam. Tornaram-se vagabundos naquela que era na época a cidade mais moderna do Brasil. Eles 'ocuparam' o Liceu de Pernambuco e mendigaram de forma intrusiva. Por fim, as autoridades brasileiras pediram ao cônsul da Bélgica que os repatriasse.”

Um número tão grande de belgas deveria ter deixado informações nos jornais belgas e brasileiros da época. Mas, uma busca realizada nas hemerotecas dos dois países não propiciou muitos resultados.

O jornal Diário de Pernambuco do dia 09 de março de 1859 publicou um ofício ao vice-presidente da província, Dr. Joaquim Pires Machado Portella, para investigar se são “justas e fundadas” as queixas dos operários belgas ao conhecimento do seu cônsul contra a maneira que são tratados. “O engenheiro empreiteiro, e bem assim o cônsul belga estimarão ter acerca de tais ocorrências o juízo de uma pessoa imparcial e ilustrada, que estude no próprio teatro dos acontecimentos não só a justiça ou injustiça de tais queixas, como os meios de as fazer desaparecer se não foram de indo infundadas.” O nome do engenheiro não foi informado, assim não sabemos que se trata do belga Consoul, do engenheiro envolvido na tubulação do gás, na construção da estrada de ferro ou de outro empreendimento. Não há, nas edições seguintes dos jornais, menção da resposta do vice-presidente ou se houve mesmo uma investigação e quais as conclusões. Será que o cônsul belga informou os acontecimentos aos seus superiores e que foi guardado algum documento no Arquivo das Relações Exteriores em Bruxelas?

Achamos uma única notícia sobre a ocupação, não do liceu, mas do ginásio, no jornal Diário de Pernambuco de 25 de fevereiro de 1861:

Diario de PernambucoLembramos, que tendo de ser coberto o edifício do gymnasio, se não deixe de mandá-lo fechar em todas as suas janelas e portas, afim de que não sirva de couto a malfeitores.

Já atualmente serve ele de abrigo aos belgas, que vagam por esta cidade sem ubi nem ocupação, condições estes que nenhuma garantia oferecem, sendo que já d’ali tem partido alguns ataques à propriedade por estes mesmos inquilinos, como deu-se há dias com uma mulher, que voltava de Santo Amaro, onde fora vender miudezas.

A reprodução disto deve ser acautelada, mesmo porque o governo belga nada tem com belgas que saem do seu país sem animo ou intenções de voltaram a ele; os quais por tanto devem ser vigiados; reprimidos pela autoridade do país, que deve providenciar a respeito.

Outros artigos no mesmo jornal informam que o prédio do ginásio estava fechado para reformas e que foram organizadas loterias para arrecadar verba para fazer os reparos.

O mesmo catálogo Vlamingrant acrescenta a tradução de um artigo publicado no Diário de Pernambuco de 28 julho de 1862, citado pelo professor Eddy Stols. Infelizmente, o mencionado jornal, disponível na Hemeroteca Digital Brasileira é parcialmente ilegível, impossibilitando a verificação da informação. A tradução do trecho do holandês em português é da minha autoria.

Entre os belgas que percorrem as ruas das 18h00 às 21h00, há dois que agarram os braços dos transeuntes e pedem dinheiro. Um deles já fez isso comigo diversas vezes, me chamando de pai, e quando eu o empurrei para o lado com minha bengala, sem bater nele, ele começou a gritar 'pare ladrão!'. A polícia deve garantir que essas pessoas pobres pelo menos mendiguem decentemente e parem de agarrar as pessoas pelos braços.

A descrição da palavra belga no Vocabulário Pernambucano é uma excelente prova da observação do José Horta Nunes “Apesar do enfraquecimento da economia regional em Pernambuco e da redução de sua influência política durante a Primeira República, vê-se desenvolver uma prática lexicográfica que atualiza a memória de uma região que tem uma tradição política e cultural sedimentada, marcada pelos contatos internacionais e pela influência portuária do Recife.” Essa análise está publicada na página 55 do artigo “As palavras, o espaço e a língua: O Vocabulário Pernambucano” na revista “Línguas e instrumentos linguísticos”, n° 16, p. 43 – 56.

Aguardamos notícias se há maiores informações sobre este tema, se ele foi restrito ao contexto histórico do Recife ou ocorreu em mais cidades do Nordeste brasileiro, qual o impacto dessa situação nas relações diplomáticas entre os dois países, como teria sido a volta desses trabalhadores a sua terra natal. Foi bom constatar, durante a minha visita ao Recife, que esse significado dos belgas não continua até hoje, pois, ao me apresentar como historiador belga, só recebi comentários positivos de boas-vindas!

Em um momento histórico de grandes deslocamentos de populações por diferentes razões, entre elas a crise climática, é interessante resgatar a história de como pessoas oriundas do Norte global foram recebidas e retratadas nas regiões de chegada das migrações, e quais as razões nos contextos específicos.

Marc Storms, 26 de julho de 2024

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