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Belgas no Núcleo Colonial das Cannas, Lorena

"Venha para o céu, não fique mais no inferno" 

Os livros de registros das pessoas que passaram pela Hospedaria de Imigrantes do Estado de São Paulo no bairro paulistano do Braz revelam que 116 belgas chegaram em São Paulo em 23 de janeiro de 1887 com o vapor Hannover. 16 famílias, totalizando 83 pessoas tiveram como destino Lorena (SP), 4 famílias com 14 pessoas Santos (SP) e 3 famílias com 12 pessoas Limeira (SP).

As famílias belgas com destino a Lorena são as seguintes: Bodart, Brouchain, Closset, Cosvreur, Detemmercan, Gouber, Guertaimon, Herlinvane, Kets, Laberne, Narbot, Trehouse, Van Bulsel, Vande Velde, Van Eyken e Werson. A grafia dos sobrenomes está conforme como foi anotada no Registro de Matrícula.

Corneel Milh menciona na sua tese de mestrado em história, “Belgische emigratie naar de Republiek van Brazilië tussen 1889 en 1914" [Emigração belga para a República do Brasil entre 1889 e 1914] (Universidade Gent, 2007) um relatório sobre a província São Paulo, escrito pelo cônsul belga Van Varenbergh[1]:

Em Lorena, o cônsul encontrou as famílias Bronchain de Couillet e as famílias Timmerman de Everbeek. Ambas conseguiram escapar da situação miserável na Bélgica para se dedicarem ao cultivo de cana-de-açúcar e tabaco, respectivamente. A família Timmerman já havia pagado a maior parte de suas dívidas, embora ainda devesse.  O chefe da família pediu ao cônsul que mandasse buscar um padre belga para que eles pudessem ao menos praticar sua fé em sua língua materna. (p. 113)

No Registro de Matrícula da Hospedaria achamos a família “Brouchain”, constituída pelo pai Henrique José com 38 anos, a sua esposa Maria Luísa, também com 38 anos, e seus filhos Jules, 20, Eduardo, 18, Alice, 17, Luís, 13 e Felix, 1.

O jornal A Immigração: Orgão da Sociedade Central de Immigração de fevereiro de 1888, publicou uma carta escrita por Henri Bronchin, desde o Núcleo Colonial das Cannas, Lorena, no dia 21 de setembro de 1887, seja 8 meses depois sua chegado no Brasil.

Nela, Henri escreve para seu irmão e irmã que ficaram na Bélgica, confirmando o recebimento da carta deles, dois pacotes de jornais e sementes. Ele ainda estava esperando a chegada de caixas. Comenta que todos estão em boa saúde e viviam muito melhor que na Bélgica. As colheitas de vagem, arroz, milho, cana de açúcar, batatas e verduras são excelentes e todas as verduras produzidas, a partir de sementes belgas, produziram muito melhor que lá. Convidou-os para migrar também “Viens au paradis; ne reste plus en enfer” [“Venha para o céu; não fique mais no inferno”]. Henri já havia comprado um segundo lote de terra e pagado o primeiro. Seu filho Louis voltou à escola, no Rio de Janeiro e a sua filha Alice iria se casar. Tem uma sociedade de música com dirigente belga, “toute la colonie est belge”.

Carta 1

Carta 2

Carta 3

Não achamos a família Timmerman no registro, mas sim, a “Detemmercan” que provavelmente é a mencionada pelo cônsul Van Varenbergh. Eram Pierre Antoine de 32 anos, Rosalia de 34, Alfonse de 11, Camillo de 10, Maria Rosalia de 7, Alexandre de 5 e Emilia de 2 anos.

O Relatório apresentado pela Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo em 31 de março 1892 ao cidadão Dr. Alfredo Maio, digno Secretario dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas deste Estado explica que o Núcleo colonial das Cannas estava dividido em 82 lotes rurais. Em abril de 1891, existiam 60 famílias com 3.416 pessoas e 13 possuidores de lotes, solteiros. Pertenciam às famílias com as nacionalidades: brasileira 26, italiana 18, portuguesa 11, belga 5. Os proprietários solteiros de lotes eram 11 brasileiros, 1 português e 1 belga. No núcleo das Cannas era praticada, além da cultura de cereais para a sua subsistência, a cana de açúcar, favorecida pelo Engenho Central de Lorena, inaugurado em 1884 que entraria em falência no ano de 1901. Na época, Cannas fazia parte da cidade de Lorena (SP).

Nesse estágio da pesquisa, ainda fica a lacuna do porquê, quatro anos depois da chegada das 16 famílias belgas só restaram 5 famílias e um solteiro? Ou será que nem todas as famílias mencionadas com destino Lorena se instalaram no núcleo das Cannas? Mas então, como podemos interpretar a carta do Henri Bronchin “toute la colonie est belge”?

O acervo digitalizado do Arquivo do Estado de São Paulo guarda 180 registros do núcleo colonial Canas. Achamos os seguintes pedidos de título definitivo de lote dos seguintes belgas

  • Jules Bronchain do dia 10/11/1892 a quem foi concedido provisoriamente o lote N° 28 em 27/08/1890 de 98.000 m² pelo valor de quatro contos mil reis.
  • Alberto, Elisa Adelaide (esposa) e Henrique (filho) do dia 24/03/1893. Eles são os herdeiros de Charles Louis Kets a quem foi concedido provisoriamente o lote N° 37 pelo valor de quatro contos mil reis em 15.09.1888.
  • Henrique Bronchain do dia 02/04/1893 por a quem foi concedido provisoriamente o lote N° 40 de 91.340 m² pelo valor de quatro contos mil reis em 15.09.1888.
  • E um pedido de Josef Vandervelde do dia 27/10/1891 de construção de casa. Ele era proprietário do lote 26.
  • Os nomes do Antonio Vetermermom [De Temmerman] e José Vandevels [Vande Velde] são mencionados no pedido de título definitivo feito pelo engenheiro Leandro Dupré em 17/12/1892 com respectivos lotes 31 e 26. E no pedido de uma semana depois o engenheiro fez o pedido para Kerlenvamer [Herlinvane] Joseph.
  • O nome de Luiz Agustinho J[osé] Brouchain aparece no livro de frequência do curso noturno em 1907, sendo o único belga.

O artigo sobre a história do município Canas (SP) da biblioteca do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) explica que “Os imigrantes assinavam um contrato por cada lote de terra (na época o valor destes lotes girava em torno de 400.000 mil réis cada um), sendo estipulado um prazo de quatro anos para que a dívida fosse quitada. Com o integral cumprimento do contrato e seu término, os imigrantes adquiriam o direito de plantarem o que quisessem.” Será que as 11 famílias belgas já haviam quitado a sua compra neste prazo de 4 anos?

Estranhamente, o artigo no IBGE começa com a informação que “A origem do município de Canas inicia-se mais precisamente no dia 28/06/1887, quando a primeira leva de imigrantes vindos da Itália, desembarca no município de Lorena” e que “Após a chegada das famílias de imigrantes italianos desembarcaram também, em Canas, famílias de imigrantes portugueses de sobrenome Andrade e Livramento, além da família de imigrantes belgas de sobrenome Bronchaim.” O último é o nosso conhecido autor da carta, Bronchin, que o cônsul e o registro de matrícula escreveram como Brouchain. O artigo não menciona a data da sua chegada, só que era após 28 de junho, nem a presença de outras famílias belgas no local. O artigo lista 12 sobrenomes de famílias de imigrantes italianos que fixaram residência em Canas. Uma pesquisa no Registro de Matrícula da Hospedaria revelou que só 4 dessas famílias chegaram antes de 28 de junho de 1887, em diferentes datas, mas depois da chegada dos belgas.

Infelizmente o artigo do IBGE não menciona as fontes para verificar as informações. O site da Prefeitura do Munícipio de Canas dá os mesmos detalhes. Eu duvido que os belgas tenham chegado depois de 28 de junho, pois eles só poderiam ficar no máximo sete dias na Hospedaria, aonde chegaram no dia 23 de janeiro. E, como era o procedimento, saíram da Hospedaria direto para seu destino Lorena.

O Arquivo do Estado de São Paulo guarda também um pedido de estabelecimento de imigrantes nos lotes já demarcados no núcleo colonial Canas com data 19/01/1886 pela Companhia Engenho Central de Lorena. Podemos assim concluir que os primeiros imigrantes chegaram antes da data mencionado no artigo do IBGE?

O IBGE acrescenta que “Os primeiros imigrantes, ao chegarem, não encontraram uma terra já pronta para ser arada, mas sim rincões selvagens que precisavam ser desbravados. Por causa disso muitos não se adaptavam.” O já mencionado relatório do cônsul Van Varenbergh reforça essa explicação comentando que a escolha das pessoas para a migração não foi adequada, mas também que algumas foram enganadas com falsas informações.

Houve casos de belgas vagando pelas colônias e cidades próximas, escreveu o cônsul, entre outros, um grupo de migrantes da cidade de Gent, acompanhados por dezenas de crianças que queriam chegar ao Rio de Janeiro a pé, vindos de Lorena, mencionados no relatório do cônsul Van Varenbergh que escreveu: Como nenhum deles era agricultor, eles não se adaptaram. Entre eles estava uma tal de Boddaert, um mecânico qualificado de uma importante família de Gent, para quem o cônsul obteve um lugar na colônia vizinha de Cannas. No entanto, isso acabou sendo um esforço em vão: no caminho de volta, o cônsul viu Boddaert ainda mendigando pelas ruas. Outro caso foi o do idoso Van de Vyver, que também perambulava por Lorena. Ele havia gastado o restante de suas economias na travessia para o Brasil porque o vice-cônsul brasileiro em Bruxelas havia prometido devolver o dinheiro. No entanto, o homem não tinha direito à indenização porque já tinha mais de cinquenta anos. (Milh p. 114)

Henri Zenobi Bodart de 38 anos, sua esposa Maria, 27, e seus filhos José, 13, Juliette, 9, e Maria, 7, foram registrados na Hospedaria. Não foi achado o registro de Van de Vyver.

A família Cosvreur mencionada no Registro de Matrícula como destino “Lorena” provavelmente não se mudou até lá, mas se fundou em Jacareí (SP). O cônsul Van Varenbergh menciona no seu relatório: A família Coureur originalmente de Charleroi, se estabeleceu em Jacarchy, uma vila ao longo da linha ferroviária São Paulo - Rio de Janeiro. Graças à sua diligência e perseverança, eles compraram uma casa com um grande jardim e se dedicaram ao cultivo de vegetais. A vila era considerada um centro agrícola comercial para a região.

Eram Felix Cosvreur de 50 anos com sua esposa Hortense Dufrane e seus 6 filhos Gustaf, Desiré, Elise Maria, Aline Maria, Julio Joseph, Julia Maria. Gustavo Demanet está mencionado junto com a família "Cosvreur" no Registro de Matrícula como destino “Lorena”.

A minha pesquisa revelou que a presença dos belgas em Canas e arredores quase não foi investigada e assim em grande parte ignorada. Um correio eletrônico enviado ao Arquivo e à Biblioteca de Lorena foi respondido que não foi encontrado informações sobre os belgas. Esperamos a resposta do lado da Prefeitura de Canas.

Será que ainda há presença belga na região? Gostaria de convidar pesquisadores, historiadores e descendentes das pessoas mencionadas para compartilhar suas informações.

 

[1] A.B.Z. nr. 2971 I: Rapport over de provincie São Paulo van consul Van Varenbergh  (sem data)


 
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